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no riso da fonte
brancura de lírios -
de outras eras
casas são como gente
nascem. vivem. envelhecem
e antes de morrer

contam histórias
quando eu nasci
a casa ainda era branca
número 11
o telefone preto, de manivela
número 09
e o céu, azul infinito
mais que ouvidos, as paredes têm
memória
dentro do velho casarão em que
nasci, eu as abraço
e peço:- que me contem histórias
onde me encontro
a noite quente
me faz voltar à infância -
tantas janelas

a mesa era de tábua. corrida
toalha de oleado. marrom
fogão de lenha e muita cinza
colo de mãe e muito açúcar
café no copo e muito afeto
tudo tão velho. tudo em ruínas
tudo tão novo. tudo tão claro
desse lugar que eu vim
brevidades. instantes doces
que a Nonna fazia
com polvilho e açúcar
lacônica hora
que de tão breve se desfez
tão branca. tão rara
tão frágil. tão breve -
a flor da infância
hoje, cada rosto
em preto e branco. e pó
na fotografia

parece sorrir
franzina, a menina me olha e sorri
se ela soubesse
da vida um terço
ainda assim, sorriria?
mãos tão pequenas
para contas tão ásperas
no interminável rosário dos dias
perto de mim flui, generoso
o rio
todos mergulham ou
molham as pontas
dos pés
(só os meus, sempre secos)
talvez seja mesmo culpa
dos meus pés
pequenos

essa minha constante
falta de equilíbrio
às vezes se pergunta
se um dia houve mesmo aquele campo
onde pisou descalça
sobre folhas douradas. e pétalas
tenta rememorar
mas tudo que vê
é a estrada de pedra, longa e tortuosa
pleno deserto
onde. é sempre meio-dia
na trilha do despertencimento
segue a sina dos seus

em busca dos céus [... do sol
de si

havia um rio na minha infância
ainda há. corre lento agora
posso ouvi-lo cantar
segredos
que já não podemos decifrar
e quando eu já não for
ele ainda será. até
que o sol esfrie — ou arrebente
a pele do rio ainda é fina
o sapo não sabe
que é feio
coruja não sabe
que assusta
paca tatu bugio cotia
jaguatirica
viraram lenda:- carcaças
na memória da terra

roubaram-me os dias
e atiram todos

do alto da montanha
onde o sol. se põe

voam. folhas secas
das horas
sopradas pelo vento
ante meus olhos
incrédulos
a menina que mora
no meu porta-retratos. sorri
ela não sabe das dores
das despedidas
não sabe da saudade. do vazio
do vazio
ela nem sabe do tempo
que vai passar
olho a menina que fui
e me pergunto

por quê?
foi escolher

trilhar caminho assim
tão. solitário

chuva e escuridão
o mesmo céu da infância -
sem lamparinas
o fim das coisas parece
mesmo ser
como um rio
que sempre termina onde
começa
outro rio (ou mar)
tudo parece recomeçar

no ancoradouro da memória há tantos barcos
quase todos fantasmas
sem rumo
naufragados há tempos - retornaram ao cais
não puderam encontrar
o desejado portal do esquecimento
cemitério dos navios
sargaço mar - onde os mortos descansam
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  . . . em paz

lembrar tem doido. feito farpas
sob as unhas
ao por do sol lateja
o esquecimento
faz parar de doer
mas nos meus sonhos
todas as flores ferem. espinhos
os dias
foram para onde?
os dias

um por um
se foram. não sei
para onde

se foram. os dias
sinos de silêncio em procissão
pássaro martelo e o som
da bigorna
onde mãos calejadas
forjavam ponteiras
que entalhavam letras
em pedras sepulcrais. hoje
tudo é revérbero de saudades
do meu velho pai
sangram os velhos muros - bolores
e trincas
(feridas abertas pelo tempo)
nas descalçadas. me vejo menina
desenhando céus
com risca de giz
na minha amarelinha
sem infernos
que a primeira chuva forte apagaria


feito meu pai me sento
na sua velha poltrona marrom
na cabeceira da mesa
de tábua me apoio
no parapeito gasto
da janela apodrecida
a velha vida se repete
pena. haver ninguém a repetir
meus gestos
pai. o que sentia
ao percorrer caminhos
que hoje são meus

insondáveis
todos os caminhos

perdoa pai. te julguei tão fraco
hoje carrego meus fracassos
.  . . . tão maiores que os teus
o tempo insiste em arrastar
móveis pesados
há sempre um piano
que não passa na porta
notas suspensas. cordas frágeis
que sempre ruem. antes
que seus pés toquem a rua
em áspero ruído
um violino na parede
e um retrato
o que restou. da
desabitada e longa vida
da Tia Margarida
me vejo no retrato
sem violino
a cidade cresceu
além dos limites da infância
subiu montanhas
engoliu pastos e bois
secou. pequenos lagos
calou
corujas e sapos
apagou vagalumes
derrubou árvores
arrancou
roseiras e pomares
bulêmica
a cidade vomita
saudades. do chão de terra
que já não se vê

pátria. é o velho casarão em que nasci
de onde. me exilei para sempre
quando chegou o vento. que soprou
cortinas. e destelhou a casa
derrubou as paredes. e espalhou poeira
que arranhou meus olhos. de menina
ainda. vermelhos

de onde a beleza. senão
nos olhos
que moram no meio
da minha
cara
que mora no alto
da minha
carne. a casa onde moro
a árvore. que me viu menina
a mesma. que me viu
mulher
a mesma. que estará por aqui
quando eu já. não
estiver
árvores do quintal
da infância

revi vi
sumo nos olhos

saudade
é nódoa que não sai
nos olhos do gato pude ver refletidas
sete gerações
das mulheres mães
da minha estirpe
todas elas á beira. de qualquer. fogão
ardem em brasas
os olhos do gato
em seu último fôlego
(mais que cumprida sina)
não haveria mesmo ninguém. depois
de mim
esse chapéu estranho. que esconde
meus cabelos. quase cobre meus olhos

e quando sopra o vento ...voa

indelével memória. invisível presença
das mulheres todas que me geraram
tangerinas
me fazem lembrar domingos
em que o sol ardia
sob minhas
unhas
e nos vãos dos meus dentes
fiapos
deste mesmo sol

fogão de lenha
tacho de cobre e a “Nonna” -
saudade é doce

árvore do cerrado
cresceu comigo

rude e exótica
mas era minha

eu fui embora
ela não quis

ela não tinha pés
eu não tinha raiz
no inventário das horas
conto migalhas
e o pássaro necrófago
devorador de sonhos
se alimenta delas
partículas minúsculas
avesso do prananayama
respiro fuligem
e a poeira dos dias
o que restou
do que o pássaro não quis
lampiões nas varandas denunciam
que por aqui
o tempo já passou
luminosos nas esquinas anunciam
um tempo eterno
de mentira
feito meu pai — eu tento
em minhas mãos
reter. o tempo
que vertiginosamente
escapa
pelos vãos dos meus dias
suspira no quarto ao lado
a velha senhora

(como suspiram os velhos
em seus sonos breves)
sorriso de mil dentes que enverdeceriam
sem deixar de sorrir
a face delicada dos fortes
os pés pequenos
prontos a caminhar eternidades
em frente à velha casa
: a única : que foi sua :
segue sonhando casas brancas de esquina
varandas e ventos
e o esquecimento. sol. a quarar memórias
agora inda mais brancas
que as sonhadas paredes — e os cabelos
a menina que fui. é mãe
da mulher que sou
que é mãe
da velha que serei
(se tiver sorte)
um dia
de mãos dadas
seguimos
juntas. em busca de nós
na casa vazia
tantos espelhos -
ninguém

o homem sonhava casas que se erguiam por si
e ninguém ao relento
(algumas giravam na rota do sol)
sonhava - águas azuis e campos
magnéticos
também sonhava simular o tempo
submetendo a matéria à exaustão calculada
viveu na rua – foi sombra
águas mornas em velhas garrafas sobre
enferrujados imãs
então
submetido pelo tempo – exausto – sucumbiu
matéria que era - num risco
mal calculado
há limo nos muros. ferrugem nos portões
as portas rangem
a roupa está puída. sapatos estão gastos
espelhos trincados
o piso lascado. a prata enegrecida
varais cortados
[... goteiras
o vendaval do tempo soprou. e destelhou
a casa

quando desci a serra pela primeira vez
(com meus olhos míopes)
não pude
distinguir entre céu
e mar
tudo era um só azul
entre brancos
e tudo se estendia
além : dos previsíveis contornos reias
e a noção do (in)finito
nunca me pareceu tão próxima
e tão absurda
na velha poltrona de meu pai
outra vez me sento
e um sentimento estranho
de quem
se despede da vida
toma conta de mim
hora absurda que sempre chega
só não se sabe quando
em preto e branco me vejo
meu mais fiel retrato
cores desbotam. eu
descolorida desde que. sigo
com minhas botas de
memória e esquecimento
(pares desencontrados)
caminho estreito e raso. só
onde. mais ninguém

sinos que se calaram há séculos
nas ruínas do templo
tangem-se a si mesmo
numa afronta cabal
ao esquecimento
e aos truncados silêncios
. . . . . . . .falíveis e imperfeitos
velho tronco é banco
velho banco
é lenha
que queima e se espalha
sobre o canteiro
onde
brotam sementes
da mesma espécie:-
árvores de fogo e cinzas
outra vez. tombam as velhas árvores
e a profecia se cumpre

há um deserto de concreto onde
um dia houve. um jardim

onde pisei criança e sonhei florestas
mais cedo que de costume acordo
e entre ciprestes
cumpro
o ritual da saudade
o pássaro. leva nas asas o abraço
e a prece
teu rosto no retrato. os olhos fundos
perdidos
como quem busca vida
distantes
como quem sabe o tempo
verdes em sépia na fotografia
grafada face
lábios cerrados como quem pressente
o grande. silêncio
meus vivos meus mortos
já não os distingo
e eles me olham
com a habitual indiferença
mais um porta-retratos
em preto e branco
na prateleira da memória
(e o pó nas molduras
sequer o vento sopra)
sombras antigas do que fomos
dançam
nos muros altos que se elevam
atrás
dos nossos passos
ando pelas ruas de pedra. molhadas
do exagero das chuvas
há limo nas calçadas
e nos meus
olhos
fartos do cinza. buscam o sol
— o sol
uma vez mais
há de queimar a minha pele branca

os bois dos dias cinzentos
ruminam restos do sol
de outros dias
Nhô Danié
um preto velho na minha infância
cheia de cores
procissão
de fantasmas — felizes
passaram hoje
pela janela dos olhos da memória
na memória sonora
inteira
minha infância
diante
dos meus olhos
estrada
de terra
(batida e longa)
se afunila
e muito além
das incontáveis
porteiras
quase
no infinito
tudo - desaparece

devoro lonjuras, porque de perto
nada é assim tão doce
Minas
não há mais
e agora? o que haverá
onde Minas havia
e já não há
raso e manso, o rio da infância
agora transborda
enverga as amoreiras
destrói o asfalto que não havia
arranca pela raiz
as velhas mangueiras
decepa os lírios brancos. talvez
para sempre
é findo. o tempo da doçura
e da inocência. águas barrentas
fúria
os relógios insistem em seus ruídos
arrastando ponteiros
e horas
os relógios deveriam ser silenciosos
num mínimo de respeito
aos instantes mortos
morte morrida. morte matada
— toda morte é natural
dizia meu avô
fazedor de túmulos
lápides e epitáfios
que naturalmente
lutou muito. pra não morrer
éramos poucos
somos menos agora -
serenos
envelhecer como meu pai. na sua
solidão de lua

seu silêncio de pedra

e a placidez de um lago que seca
sob o sol de outros tempos
o banco de madeira apodrecida
mais velho que a casa
já tão velha
viu brotar. a árvore
viu crescer. a árvore
agora já tão velha
que viu
o primeiro balanço
cujas cordas já se romperam
há tanto tempo
e finalmente Minas
estava lá

nossos velhos todos
nomes de rua

nos olhavam passar
inverno ainda
- nos olhos da memória
queimam fogueiras

do lugar de onde vim:- predestinadas pedras
haveriam de rolar
nem todas
algumas resistem:
entrelaçadas garras pedras/cipós
que se prendem à montanha/mãe
onde nasceram
veios à mostra/obscenas senhoras atrás
de quem
cruzaram oceanos
os meus
sem saber
que vida de pedra levariam:- meu legado
e alguma flor:- dessas que rompem a náusea
de existir
o velho
em seu cavalo navega
mares
de poeira e solidão
o nome
do cavalo é estrela

(há tanto tempo extinta)
o nome. já não me lembro
do nome. da memória
os olhos
de que cor eram mesmo
os olhos
da memória?
tinha boca vermelha
e cantava
não ouço mais
a canção
da memória
eram fortes e ternas
as mãos
imensas da memória
me lembro agora. vagamente
tinha um corpo a memória
um rosto

tinha alma
restam os ossos. estão guardados
numa caixa de vidro
pequena

nas noites quentes
estalam

um dia. tudo será pó
há que soprar. pois não há vento
na casa da memória

os ossos foram trancados na caixa pequena
(estanha caixa)
que guarda. quase dois séculos
da minha história
(onde um dia mergulharei)
as chaves. serão veladas. por quatro olhos
que um dia serão trancados
na mesma caixa. por outros olhos
que não sei quantos serão. até
que os últimos dos olhos
a si mesmo se tranquem e a caixa se desfaça
e tudo será terra (antes do vento)
memória: - é apenas um nome
inscrito
na sola dos pés

vai se perdendo na caminhada

a velha levanta de madrugada bem antes do sol
nascer
parece palavra que nunca existiu
se arrasta
chinelos pesados carregam o barro do chão
parece que sempre
chove
palavra que nunca seca
traço nenhum que diga que um dia foi moça
menina ninguém dirá
parece
nascida assim
sem dentes cabelos brancos a boca torta derrama
o sangue das veias
a lágrima grossa parece esperar
ninguém

o homem sonhava – visionário que era
distâncias à frente de seu tempo
morreu antes da hora
[ nas mãos vazias, apenas os calos
das ave-marias
a fé do homem era ainda maior que seu sorriso
os olhos do homem eram cinzas
verdes cansados
de olhar fogueiras

a voz antiga me ronda, quer voltar
mas não sabe cantar essa voz então se arrasta, triste, pesada
sonolenta
carrega memórias e esquecimentos
lamúrias e dores ancestrais
e diz de campos de flores e trigo que já secaram
embarques /chegadas em trens e navios
agora fantasmas
de mares e rios que transbordaram e estradas e trilhos cobertos
de árvores de cipós
o pó dos dias embaça os olhos e a voz se perde
entre ruído e música que insistem em perturbar o tom
e o ritmo original
dissonante poema que oscila entre o que não foi
e o que se perdeu no caminho
mas para onde foi a menina que fui?
tenho dela apenas um retrato
desbotado
um sorriso não decifrado. e os olhos
longe. que ainda não se sabiam
míopes

dentro da fita cassete. moram vozes
de infâncias e velhices
perpetuadas no tempo quando
a gente era feliz. e nem
sabia quanto. seria breve o canto
seria eterno
quer voltar para casa
virar as costas ao mundo
buscar o velho
caminho
despertar. do sono
do não
e encontrar o porto
onde
o grande barco ancora
zarpar. vias do coração
ah... insistir na vida
algo assim
como sorrir
sobre o leite derramado
e se fartar
do sabor do doce
que teria sido
onde tudo não passa
é o lugar
onde quem ama está
e quer ficar

(para sempre)